RECURSO ESPECIAL Nº 1.080.719 - MG (2008/0179393-5)
RECORRENTE : RAFAEL COSTA DE TONI
ADVOGADO : FELIPE FAGUNDES CÂNDIDO E OUTRO(S)
RECORRIDO : VOLKSWAGEN DO BRASIL INDÚSTRIA DE VEÍCULOS
AUTOMOTORES LTDA
ADVOGADO : SÉRGIO INTROCASO CAPANEMA BARBOSA E OUTRO(S)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RELATÓRIO
Cuida-se de recurso especial, interposto por RAFAEL COSTA DE
TONI, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional.
Ação: ajuizada pelo recorrente em face da VOLKSWAGEN DO
BRASIL LTDA, com o escopo de rescindir contrato de compra e venda de um
caminhão, reembolsar os valores pagos à recorrida, recompor as parcelas pagas a
terceiro arrendador do veículo e obter compensação por danos morais.
Na inicial, narrou o recorrente que adquiriu veículo novo que
apresentou defeitos no motor, sendo submetido a conserto duas vezes pela
concessionária, fato que lhe causou prejuízos econômicos decorrentes do período
de imobilização do bem, ensejando, ainda, a rescisão do contrato de prestação de
serviços que deveria honrar com a efetiva utilização do caminhão. Informou,
ainda, que, por não ter cumprido o contrato, sofreu ofensa moral consistente no
desprestígio de seu nome no meio profissional e diminuição de sua auto-estima.
Pediu, com base na hipossuficiência, a inversão do ônus da prova,
nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, no tocante à produção de prova da
existência do defeito do caminhão.
Decisão interlocutória: deferiu a inversão do ônus da prova
pleiteado pelo recorrente.
Acórdão: deu provimento ao agravo de instrumento do recorrido,
nos termos da seguinte ementa:

“Segundo o artigo 2º do CDC, consumidor é o
destinatário final do produto ou serviço, não se enquadrando nesse
conceito a pessoa física ou jurídica que adquire capital ou bem a
ser utilizado em sua cadeia de produção, pois, nesse caso, evidente
tratar-se de insumo e não bem de consumo. Não se aplicando ao
caso concreto o disposto no CDC, indevida a inversão do ônus da
prova”. (fl. 133)
Embargos de declaração: foram rejeitados.
Recurso especial: aponta negativa de vigência ao art. 2º do CDC,
bem como divergência jurisprudencial em relação à amplitude do conceito de
consumidor.
Prévio juízo de admissibilidade: após a apresentação das
contra-razões do recorrido (fls. 177/193), foi o recurso especial admitido na
origem (fls. 195/196).
É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.080.719 - MG (2008/0179393-5)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : RAFAEL COSTA DE TONI
ADVOGADO : FELIPE FAGUNDES CÂNDIDO E OUTRO(S)
RECORRIDO : VOLKSWAGEN DO BRASIL INDÚSTRIA DE VEÍCULOS
AUTOMOTORES LTDA
ADVOGADO : SÉRGIO INTROCASO CAPANEMA BARBOSA E OUTRO(S)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
VOTO
Trata-se de recurso especial cuja controvérsia diz respeito à
amplitude do conceito de consumidor para o fim de obter o benefício da inversão
do ônus da prova.
Especificamente, a hipótese versa sobre freteiro que adquiriu
caminhão para desenvolver a sua profissão de motorista.
A Segunda Seção do STJ, ao julgar o REsp 541.867/BA, Rel. Min.
Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão o Min. Barros Monteiro, DJ de 16/05/2005,
optou pela concepção subjetiva ou finalista de consumidor, sedimentando seu
entendimento nos termos da seguinte ementa:
“COMPETÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO.
UTILIZAÇÃO DE EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE
CRÉDITO PRESTADO POR EMPRESA ADMINISTRADORA DE
CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO FINAL INEXISTENTE.
- A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por
pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou
incrementar a sua atividade negocial, não se reputa como relação
de consumo e, sim, como uma atividade de consumo intermediária.
Recurso especial conhecido e provido para reconhecer
a incompetência absoluta da Vara Especializada de Defesa do
Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e, por
conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas
Cíveis da Comarca.”

Nesse julgamento, os Ministros Pádua Ribeiro, Nancy Andrighi,
Humberto Gomes de Barros e Castro Filho manifestaram expressa predileção pela
teoria maximalista ou objetiva, sendo que a tese vencedora recebeu apenas cinco
dos nove votos.
De acordo com esse julgado, o conceito de consumidor ficou restrito,
alcançando apenas a pessoa física ou jurídica que adquire o produto no mercado
a fim de consumi-lo. Em outras palavras, o consumidor foi conceituado como o
destinatário final no sentido econômico, ou seja, aquele que consome o bem ou o
serviço sem destiná-lo à revenda ou a insumo de atividade econômica.
Evoluindo sobre o tema, a jurisprudência do STJ no AgRg no Ag
807.159/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 3ª Turma, DJ de
25/10/2007, flexibilizou o entendimento anterior para considerar destinatário final
quem usa o bem em benefício próprio, independente de servir diretamente a uma
atividade profissional:
"PROCESSUAL CIVIL. REEXAME DE PROVAS.
SÚMULA 7.
- “A pretensão de simples reexame de prova não enseja
recurso especial.”
- O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às
instituições financeiras. Incide a Súmula 297.
- O conceito de "destinatário final", do Código de
Defesa do Consumidor, alcança a empresa ou o profissional que
adquire bens ou serviços e os utiliza em benefício próprio."
Não obstante a Segunda Seção ter balizado o conceito de
consumidor, novos julgados voltaram a aplicar a tendência maximalista,
agregando novos argumentos a favor de um conceito de consumidor mais amplo
e justo.
Dentre eles, consigne-se, a propósito, o julgamento do REsp
684.613-SP, de minha relatoria, 3ª Turma, DJ de 01/07/2005, que restou

ementado nos seguintes termos:
"DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO
ESPECIAL. CONCEITO DE CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA.
EXCEPCIONALIDADE. NÃO CONSTATAÇÃO NA HIPÓTESE
DOS AUTOS. FORO DE ELEIÇÃO. EXCEÇÃO DE
INCOMPETÊNCIA. REJEIÇÃO.
- A jurisprudência do STJ tem evoluído no sentido de
somente admitir a aplicação do CDC à pessoa jurídica empresária
excepcionalmente, quando evidenciada a sua vulnerabilidade no
caso concreto ; ou por equiparação, nas situações previstas pelos
arts. 17 e 29 do CDC.
Mesmo nas hipóteses de aplicação imediata do CDC, a
jurisprudência do STJ entende que deve prevalecer o foro de
eleição quando verificado o expressivo porte financeiro ou
econômico da pessoa tida por consumidora ou do contrato
celebrado entre as partes.
É lícita a cláusula de eleição de foro, seja pela
ausência de vulnerabilidade, seja porque o contrato cumpre sua
função social e não ofende à boa-fé objetiva das partes, nem
tampouco dele resulte inviabilidade ou especial dificuldade de
acesso à Justiça.
Recurso especial não conhecido”.
Com esse novo entendimento houve um significativo passo para o
reconhecimento de não ser o critério do destinatário final econômico, o
determinante para a caracterização de relação de consumo ou do conceito de
consumidor. Ainda que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final
econômico, poderá ser considerado consumidor, desde que constatada a sua
hipossuficiência, na relação jurídica, perante o fornecedor.
Essa nova compreensão concretizou-se no julgamento do REsp nº
716.877/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, 3ª Turma, DJ de 23/04/2007, de onde se
extrai:
“No estado atual do nosso ordenamento, a pessoa
jurídica está incluída no conceito de consumidor por expressa
disposição de lei (CDC, art 2º, caput).

A dificuldade da definição legal é a de que a qualidade
de consumidor está vinculada à condição do adquirente do
produto, a de destinatário final.
A noção de destinatário final não é unívoca. Pode ser
entendida como o uso que se dê ao produto adquirido. Sob esse
viés, seria consumidora a pessoa jurídica que utilizasse o produto
para fins não econômicos. Isso poderia reduzir a proteção legal do
consumidor a pessoas jurídicas sem finalidade lucrativa. A
doutrina e a jurisprudência, por isso, vêm ampliando a
compreensão da expressão 'destinatário final' para aqueles que
enfrentam o mercado de consumo em condições de vulnerabilidade .
Nessa linha, uma pessoa jurídica de vulto que explore
a prestação de serviços de transporte tem condições de reger seus
negócios com os fornecedores de caminhões pelas regras do
Código Civil. Já o pequeno caminhoneiro, que dirige o único
caminhão para prestar serviços que lhe possibilitarão sua
mantença e a da família deve ter uma proteção especial, aquela
proporcionada pelo Código de Defesa do Consumidor. A propósito,
José Geraldo Brito Filomeno extrai da doutrina estrangeira um
exemplo muito apropriado à espécie sub judice:
'... o homem que dispõe de um caminhão apenas para
conduzir seu negócio é um consumidor com relação ao grande
fabricante do caminhão com relação ao qual dificilmente se
poderia dizer que tivesse igual poder de barganha' (Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, 8ª edição, Forense Universitária, pág. 33)”.
No processo em exame, o que se verifica é o conflito entre um
motorista (pessoa física) que adquire caminhão para fazer fretes em prol da sua
sobrevivência, ficando evidenciada a sua vulnerabilidade, dada a incapacidade de
apontar ou de precisar qual o defeito técnico do caminhão. Motorista não é
qualificação capaz para decifrar qual o defeito mecânico. Observa-se, nos autos,
que nem mesmo a fabricante conseguiu de pronto consertar o veículo que
fabricou. Se para o fabricante não foi possível detectar e consertar o defeito,
muito mais difícil se revela esta tarefa para o comprador. Diante deste quadro
fático é inexorável a conclusão de hipossuficiência do comprador, o qual não tem

condições de conhecer a concepção, o desenvolvimento, e a tecnologia utilizadas
na fabricação. Exigir do profissional leigo que aponte e demonstre o defeito é criar
desequilíbrio inaceitável para o devido processo legal.
A prova pericial é o instrumento adequado para eliminar a referida
desigualdade, na qual o perito com a sua suficiência técnica detectará o defeito e a
sua autoria. Contudo, quando além da hipossuficiência técnica, adiciona-se a
econômica, pelo inegável alto custo da prova pericial, esse abismo processual
permanece, causando, na prática a frustrante jurisdição prestada com base na
falta de prova.
O recorrente é pessoa física que presta serviço de transporte e
adquiriu caminhão zero quilômetro com defeito que impediu o seu uso, por meio
de contrato de arrendamento mercantil - forma usual disponível para pessoas que
não podem adquiri-lo à vista - formando relação de consumo por adesão com o
fabricante.
O princípio da vulnerabilidade, insculpido no inciso I do art. 4º do
CDC, direciona a interpretação no sentido de que o profissional deve ser
considerado consumidor desde que evidenciado o nexo de sujeição em face do
vínculo de dependência e de vulnerabilidade, em face da insuficiência técnica,
jurídica ou econômica.
Assim, tem decidido a 3ª Turma do STJ:
"Direito Processual Civil. Recurso especial. Ação de
indenização por danos morais e materiais. Ocorrência de saques
indevidos de numerário depositado em conta poupança. Inversão
do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade.
Hipossuficiência técnica reconhecida.
- O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno
exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a
inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por
ele apresentada seja verossímil, ou quando constatada a sua
hipossuficiência.
- Na hipótese, reconhecida a hipossuficiência técnica

do consumidor, em ação que versa sobre a realização de saques
não autorizados em contas bancárias, mostra-se imperiosa a
inversão do ônus probatório.
- Diante da necessidade de permitir ao recorrido a
produção de eventuais provas capazes de ilidir a pretensão
indenizatória do consumidor, deverão ser remetidos os autos à
instância inicial, a fim de que oportunamente seja prolatada uma
nova sentença.
Recurso especial provido para determinar a inversão
do ônus da prova na espécie."
(REsp 915599/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,
TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2008, DJe 05/09/2008)
Caracterizada, neste processo, a vulnerabilidade do recorrente bem
como evidenciadas as hipossuficiências técnica e econômica, está plenamente
justificada a aplicação das regras de proteção ao consumidor, notadamente a
concessão do beneficio processual da inversão do ônus da prova.
Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial para
deferir o pedido de inversão do ônus da prova formulado pelo recorrente.
 
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