Desativando o Cenário da Bomba-Relógio reafirma e reforça a absoluta e irrevogável proibição da tortura e todas as outras formas de tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, frente aos desafios surgidos com o denominado Cenário da Bomba-Relógio.
A tortura deve ser vista pelo que é: detestável e vergonhosa. A tortura nunca é corajosa ou honrosa. Por bons motivos a tortura, assim como o genocídio e a escravidão, se tornou um tabu na era moderna, e como tal deve permanecer.
O que é o Cenário da Bomba-Relógio?
O Cenário da Bomba-Relógio é um “exercício mental” hipotético destinado a questionar a proibição absoluta da tortura. Pode ser formulado da seguinte forma:
Suponha que alguém envolvido em um ataque terrorista iminente, que matará muitas pessoas, foi capturado pelas autoridades e que só se for torturado revelará as informações necessárias para impedir o atentado. Ele deve ser torturado?”
Em discussões públicas, o Cenário é apresentado como questão pessoal a algum dos presentes contrário à tortura. Neste contexto, é com freqüência personalizado:
Mas suponha que você sabe que vai acontecer um atentado em pouquíssimo tempo, matando milhares de pessoas, e você está com o terrorista. O único meio de impedir o ataque é torturá-lo. Você faria isso, sim ou não?”
Por que tantas pessoas estão falando sobre o Cenário?
O Cenário da Bomba-Relógio atua através da manipulação das reações emocionais do público. Cria um contexto de medo e raiva. Deforma artificialmente as circunstâncias, de forma a gerar simpatia ou até admiração para o torturador e ódio ou indiferença para a vítima de tortura. Sua natureza dramática o tornou um dos enredos
favoritos de programas populares de TV e filmes de ação. Produz uma imagem mental poderosa que tem, até certo ponto, capturado a imaginação de parte do público global, significando que a discussão do tema ganhou força própria, muito além de seu explícito contexto jurídico-político original. Seu impacto se torna assim motivo de grave preocupação, não apenas entre organizações de direitos humanos e juristas, mas também entre destacados membros das instituições militares. (1)
Quaisquer que sejam os motivos de sua apresentação em um determinado contexto, o efeito pretendido com o Cenário da Bomba-Relógio é criar dúvida sobre a sabedoria da proibição absoluta da tortura. Esta dúvida, por sua vez, está em geral destinada a levar o público a aceitar que se crie uma exceção jurídica para a proibição, ou ao menos a aceitar que as leis contra a tortura não sejam aplicadas em alguns casos.
O objetivo real dos proponentes do Cenário da Bomba-Relógio seria criar uma exceção ampla, enquanto aparentam sugerir algo restrito. Tentando forçar os adversários da tortura a admitir que esta poderia ser aceitável, ao menos em casos extremos, os proponentes do Cenário da Bomba-Relógio esperam debilitar o próprio conceito de que a oposição à tortura deve ser absoluta, como questão de princípio e prática.
O Cenário, dessa forma, tem sido ultimamente usado pelos que buscam romper o tabu contra a tortura para fazer com que pareça aceitável sua aplicação em prisioneiros suspeitos de envolvimento em terrorismo, assim como fornecer imunidade legal a eles próprios ou outros que autorizem, tolerem, ordenem ou inflijam tortura.
NÃO” a qualquer exceção à proibição da tortura
A aposta feita pelo Cenário da Bomba-Relógio é altíssima: o fim da proibição absoluta da tortura. A resposta deve assim ser um correspondentemente resoluto “NÃO” a qualquer exceção da proibição da tortura, não importando quão restritas as circunstâncias alegadas.
Uma explicação sucinta deste absoluto “NÃO” poderia ser a seguinte:
Primeiro, é ridícula a idéia que eu, você, ou qualquer outro cidadão comum (ou, neste caso, qualquer agente do governo), sem experiência anterior ou treinamento em tortura, poderia ser bem-sucedido em extrair informações de um terrorista (provavelmente treinado ou doutrinado para resistir a ela).
Por outro lado, se você me perguntar se eu, você ou qualquer outro em nossa sociedade, deveria se tornar um torturador treinado, insensível à dor e ao sofrimento das pessoas sob meu controle, em antecipação a algum futuro e hipotético caso, minha resposta é não. Eu não quero me tornar essa espécie de pessoa e não quero pessoas desse tipo na minha sociedade. De qualquer modo, como atestam profissionais de inteligência, teríamos chances muito maiores de conseguir informações usando persuasão, astúcia ou alguma outra técnica. Então, se minha vida dependesse de obter informações rápidas e exatas, certamente não quereria alguém perdendo tempo com tortura.”
Isto é porém apenas uma resposta rápida. As seções seguintes desenvolvem argumentos muito mais detalhados, incluindo:
1. Expondo as falácias do próprio cenário para demonstrar sua natureza ardilosa, apresentando em primeiro lugar as premissas ocultas no argumento e depois as refutando.
2. Reiterando o efeito tóxico da Tortura, tal como o de seus “irmãos”, a Escravidão e o Genocídio, nas sociedades que a toleram.
3. Revelando a ladeira escorregadia para o uso mais disseminado da tortura, a partir da tolerância de sua aplicação em casos supostamente “excepcionais”.
4. Recordando o caráter absoluto e fundamental da proibição jurídica da tortura.
5. Realçando os modos como o Cenário da Bomba-Relógio manipula o julgamento moral e ético, obscurecendo o verdadeiro custo moral da tolerância a qualquer ato de tortura.
Premissas do Cenário
O Cenário da Bomba-Relógio é baseado em várias premissas, algumas delas ocultas ou implícitas. Estas suposições precisam ser postas às claras.
Por exemplo, o Cenário da Bomba-Relógio em geral apresenta como certeza, ou quase certeza, todos os seguintes pontos:

1. Sabe-se que há um plano de ataque específico.

2. O ataque acontecerá em um prazo muito curto (é “iminente”). 3. O ataque matará um grande número de pessoas.
4. A pessoa sob custódia está envolvida no ataque.
5. A pessoa tem informações que impedirão o ataque.

6. Torturando a pessoa se obterá a tempo informações para evitar o ataque. 7. Não há outro meio de conseguir as informações a tempo.

8. Nenhuma outra ação poderia ser tomada para impedir o ataque.
O cenário também presume:

9. A motivação do torturador é apenas conseguir informações, com a genuína intenção de salvar vidas, e nada mais.
10. Esta é uma situação isolada, que não se repetirá com freqüência.
O proponente do Cenário pode adaptar tais premissas ou ainda fazer concessões em resposta a contestações, para tornar seus argumentos mais realistas. Tais manobras podem ser apontadas como evidência de que o cenário inevitavelmente conduz a exceções à proibição da tortura muito mais amplas que o sugerido de início, e, em última instância, leva a uma desastrosa “ladeira escorregadia” (descrita em detalhe mais abaixo). Em qualquer situação, o Cenário da Bomba-Relógio “puro”, contendo estas dez premissas, é o mais difícil de contradizer; mas, conseguindo-se isso, as variações mais realistas (assim como exceções mais amplas) serão mais simples de questionar.
Desconstruindo as premissas
Estas premissas podem ser refutadas para demonstrar que, no mundo real, toda
“exceção” para acomodar o Cenário da Bomba-Relógio seria, na verdade, muito mais ampla que na situação artificialmente restrita sugerida de início. Isso se deve em parte ao fato de que, no mundo real, estamos, individual e coletivamente, sempre atuando com base a informações parciais e variados graus de incerteza.
Ao mostrar o verdadeiro objetivo da “exceção”, desarticulando alguma ou todas as premissas (como é explicado em detalhe mais abaixo), revela-se que o que está realmente sendo proposto não é uma exceção rara e excepcional, mas uma nova regra permitindo a tortura, o que nos faria retroceder à Idade das Trevas e às piores sociedades totalitárias. Em síntese, aceitar a lógica de “os fins justificam os meios” de qualquer exceção “bomba-relógio” à proibição da tortura significa adotar os mesmos princípios morais do próprio terrorismo.
Desestruturar as premissas também demonstra quão pouco a idéia do Cenário da Bomba- Relógio “puro” contribui a qualquer consideração séria do problema da tortura, ou no que diz respeito ao problema do terrorismo.
O exercício de desmonte pode levantar os seguintes pontos:
Premissa 1: Sabe-se que há um plano de ataque específico.
Premissa 2: O ataque acontecerá em um prazo muito curto (é iminente).
Como o cenário é apresentado, conscientemente ou não, em favor de algum tipo de exceção jurídica à proibição, a precisão é essencial. Então, em termos exatos, quanto “iminente” deve ser um ataque para justificar a tortura? Horas? Dias? Meses?
No Cenário da Bomba-Relógio, o momento do ataque, por um lado, deve ser distante o suficiente para que haja uma chance realista de fazer algo para impedi-lo. Por outro lado, se ele for muito longe no futuro, de forma que a perda de vidas possa ser evitada de outra maneira (evacuação, por exemplo), então a suposta “necessidade” de torturar
simplesmente desaparece. Além disso, quanto mais tempo até o ataque, maior é a possibilidade de resultados através de métodos humanitários de interrogatório.
Premissa 3: O ataque matará um grande número de pessoas.
Visto que está em jogo uma brecha jurídica à proibição, de novo exige-se precisão. Quantas vidas devem estar em perigo para justificar a tortura? Dez? Cem? Mil? Dez mil? Cem mil? Mais? Menos? Uma só é bastante para legitimar a tortura?
Premissa 4: A pessoa sob custódia está envolvida no ataque.
Premissa 5: A pessoa tem informações que impedirão o ataque.
No Cenário da Bomba-Relógio “puro”, a pessoa sob custódia é alguém que, sem sombra de dúvida, está diretamente envolvida no ataque e possui informações que podem impedi-lo. Isto é material de seriados de TV e filmes de ação de Hollywood, nos quais o supervilão tem um “super-ego” que o compele a se exibir e desafiar os captores. Na vida real, é improvável que os torturadores saibam, com esse grau de certeza, que a pessoa capturada é um dos responsáveis pelo atentado ou mesmo que disponha de informações relevantes. Uma das coisas mais insidiosas e perversas da tortura é justamente isso, uma pessoa sem ligação ou conhecimento do ataque acaba provavelmente por sofrer mais fundo e por mais tempo, sem meios de mudar sua sorte e sem outro futuro exceto a tortura continuada.
Em certas situações, alguns proponentes do Cenário da Bomba-Relógio chegam a ir mais longe e admitem que permitiriam a tortura de alguém que afinal se comprove não ter envolvimento em atividades terroristas ou que não disponha de quaisquer informações relevantes. Naturalmente, variará o ponto no qual os proponentes do Cenário fixarão um limite, mas todos eles devem ser pressionados para dizer se sua exceção seria flexível o suficiente para permitir a tortura de:

Uma pessoa que, segundo as autoridades, estaria envolvida, mas o nega.

Qualquer pessoa que as autoridades suspeitem ter algum grau de envolvimento.

Uma pessoa não suspeita de envolvimento, mas que tenha informações relevantes que, por algum motivo, não esteja disposta a revelar.
Um parente não envolvido mas que possa saber, por exemplo, onde seu familiar estaria escondido.
Uma criança que pode ou não dispor de alguma informação relevante, mas que não confia nas autoridades ou foi instruída a não falar nada.
Uma criança que não tenha alguma informação relevante, mas cuja tortura, na presença do envolvido no ataque, seja o único meio de fazê-lo confessar.
Se o proponente concordar com a tortura de alguma ou todas as vítimas descritas acima, isto pode ser destacado como um exemplo de como qualquer exceção à proibição da tortura, supostamente restrita, rápida e naturalmente se ampliaria, triturando cada vez mais vítimas em suas engrenagens.
Premissa 6: Torturando a pessoa se obterá a tempo informações para evitar o ataque.
Em primeiro lugar, o Cenário presume que as informações dadas pela pessoa torturada serão corretas, sem tentativas de despistar as autoridades até que o ataque ocorra. O Cenário define ao mesmo tempo um prazo extremamente curto e deixa implícito que a tortura será interrompida assim que o interrogador acreditar que dispõe das informações necessárias para evitar o ataque (o que, aliás, é obrigado a fazer se sua motivação for sincera). Nesse quadro, parece provável que um terrorista teria condições tanto de parar a tortura como enganar as autoridades pelo tempo suficiente para a execução do atentado, demonstrando assim que a tortura não seria um meio eficaz de
impedir o ataque.
Em segundo, é importante entender que a tortura não é alguma espécie de passe de mágica. As pessoas que planejariam e executariam tal ataque provavelmente seriam também treinadas a resistir à tortura até que seja muito tarde para impedi-lo. Além disso, profissionais de segurança enfatizam que o interrogatório pode ser conduzido de forma mais eficaz sem uso da tortura, assinalando que se tivessem uma única chance de sucesso, não a desperdiçariam com tortura. (2)
Em terceiro, assumindo que a tortura fosse eficaz em tais circunstâncias, pode-se presumir que o curtíssimo prazo estabelecido tornaria necessário os “melhores” torturadores, imediatamente disponíveis para “salvar o dia”. E isto, por sua vez, levaria à conclusão de que sociedades submetidas a ataques sofisticados deveriam efetuar arranjos institucionais para criar e manter uma classe profissional de torturadores, continuamente atualizada com técnicas e equipamentos de tortura. Desnecessário dizer o sombrio risco que representa um “esquadrão da tortura”, profissional e institucionalizado, para a democracia e as liberdades individuais. Este quadro mais realista do que poderia ocorrer com a preparação para a tortura sugerida no Cenário da Bomba-Relógio é muito menos palatável que a ingênua idéia de que um “heróico homem comum” inexperiente poderia ter sucesso na tortura de um suposto terrorista, presumivelmente treinado a resistir. Finalmente, a aplicação de recursos para desenvolver sistemas de tortura só dissiparia verbas, que seriam melhor aproveitadas no aperfeiçoamento de outros meios para prevenir tais ataques.
Premissa 7: Não há outro meio de conseguir as informações a tempo.
O Cenário é em geral baseado na suposição de que o torturador já sabe tudo sobre o complô, exceto um detalhe essencial que a vítima, e talvez somente a vítima, conhece. O que, naturalmente, leva à pergunta: tendo acesso a quase todo o plano, é realmente possível que não exista outra forma, exceto a tortura, de obter a informação, como métodos humanitários de interrogatório, mandados de busca, “grampos” telefônicos e assim por diante?
Premissa 8: Nenhuma outra ação poderia ser tomada para impedir o ataque.
O Cenário da Bomba-Relógio sustenta que nenhuma outra ação poderia ser tomada para evitar o ataque. Mas essa afirmação deve ser questionada. Afinal, nos termos de um Cenário “puro”, ainda que a informação seja obtida, jamais haveria tempo suficiente para evacuar o edifício, bairro, ou cidade sob ameaça, tanto porque o ataque acontecerá em curtíssimo prazo ou porque seu alvo é conhecido de forma muito imprecisa.
Premissa 9: A verdadeira motivação do torturador?
Mesmo que o torturador comece com a motivação genuína de só torturar para conseguir informações específicas, a tortura corrompe. Esta é a própria natureza da tortura. Um ex-interrogador militar estadunidense no Iraque, por exemplo, descreveu como, ao aplicar a tortura em detentos, foi tomado pelo desejo de vingança e uma sensação “eletrizante” associada ao provocar medo em outras pessoas. (3) Os proponentes do Cenário insistem que o objetivo da tortura é apenas a coleta de informações, e não a punição. No mundo real, porém, as motivações nunca são tão simples. A raiva, a sede de revide e o desejo de “mostrar quem é o chefe” podem com facilidade assumir o controle em circunstâncias extremas, além de ser inteiramente irreal presumir que os motivos dos interrogadores sempre serão puros.
Premissa 10: Esta é uma situação isolada.
Como será explicado mais detalhadamente abaixo, é da própria natureza da tortura que toda permissão de seu uso, seja concedida previamente, através de autorizações legais, ou dada pós-facto, por meio da imunidade jurídica ou outros meios, leva inevitavelmente a uma “ladeira escorregadia”, onde sua aplicação depressa se torna muito mais disseminada. Caso a aceitação das proposições do Cenário da Bomba-Relógio leve à instituição de uma brecha jurídica, devemos antecipar uma grave proliferação da tortura.
O processo de desconstrução em geral mostra que sequer os proponentes de uma exceção
podem delimitar precisamente as circunstâncias nas quais consideram a tortura “justificada”. Ainda que o proponente pudesse descrever de maneira clara tais circunstâncias, em linguagem comum, é improvável que se possa elaborar uma brecha jurídica cuja aplicação seja estritamente limitada ao tipo de situação prevista. Mesmo supondo que tal precisão legal seja conseguida, é ainda mais improvável que se chegue a qualquer acordo sobre o âmbito de pessoas que poderiam ser legalmente torturadas.
Argumentos em Resposta ao Cenário como um todo
Uma vez que os pressupostos ocultos no Cenário foram expostos e contestados, várias coisas devem ficar claras. A recente popularidade do Cenário faz parte de um esforço combinado para criar uma brecha jurídica à proibição da tortura. A falta de precisão em definir sua abrangência significa que toda exceção será necessariamente muito mais ampla que o sugerido de início pelo Cenário da Bomba-Relógio “puro”.
O passo seguinte é mostrar os motivos pelos quais qualquer proposta em favor de uma exceção à proibição da tortura deve ser categoricamente rejeitada. Nesse sentido, alguns dos principais argumentos são:

1. Tortura, Escravidão, Genocídio: Destruidores da Humanidade 2. Ladeira escorregadia

3. Proibição legal
4. Moralidade e Ética

1. Tortura, Escravidão, Genocídio: Destruidores da Humanidade
Entre as progressivas realizações da Humanidade ao longo de nossa História
compartilhada, um dos avanços mais fundamentais foi o reconhecimento em todo o mundo de que cada e todo ser humano é efetivamente um indivíduo, como está consagrado, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Parece surpreendente pensar que já houve um tempo no qual as sociedades julgavam respeitável, normal ou tolerável que alguns seres humanos considerassem outros como pouco acima dos animais, para serem usados de acordo com a necessidade ou vontade alheia; e é realmente motivo de comemoração que hoje, para a maioria das pessoas, tais convicções sejam incompreensíveis.
Várias outras realizações partiram deste entendimento fundamental. A crença na dignidade humana exige que esta seja conferida a cada ser humano. Certas formas de tratar os outros foram também consideradas, no fundamental, incompatíveis com seu reconhecimento como indivíduos, como seres humanos, e, como tal, injustificadas.
Para consolidar este alicerce de progressiva descoberta e reconhecimento da humanidade de cada um, práticas como a escravidão, o genocídio e a tortura foram absolutamente proibidas pelo direito internacional. A incompatibilidade fundamental de todas essas práticas com o reconhecimento da outra pessoa como ser humano significa que elas jamais poderão ser toleradas sem despedaçar a base comum de humanidade na qual a sociedade humana se estrutura. Tortura, Escravidão, Genocídio: cada um destes atos sempre nega não só a dignidade, mas a própria humanidade de suas vítimas.
O genocídio não pode ser justificado alegando-se, talvez até com sinceridade, que só será aplicado uma vez, ou somente em casos de extrema emergência. Também a escravidão não pode ser legitimada alegando-se ter sido instituída em favor de um bem maior. Da mesma forma que ninguém pode justificar a escravização de uma pessoa como necessária à sobrevivência de outra, e ninguém pode justificar um genocídio, mesmo que seja para evitar outro genocídio maior, quem quer que tente legitimar a tortura sob o pretexto do salvar vidas está agredindo a humanidade comum de todos nós. Devemos tratá-lo com lástima e aversão, tal como faríamos com qualquer defensor do genocídio ou escravidão.
2. Ladeira Escorregadia
Qualquer exceção jurídica criada devido ao Cenário da Bomba-Relógio nos precipitaria inevitavelmente em uma ladeira escorregadia, ao fundo da qual a tortura se tornaria arbitrária e impune, ou disseminada e sistemática, ou tudo isso. O resultado final de qualquer brecha na proibição da tortura é a erosão das instituições democráticas e a destruição de qualquer sociedade aberta, livre e justa. Em conclusão, teremos muito mais a perder, criando uma exceção jurídica para acomodar um futuro Cenário da Bomba- Relógio, do que mantendo a proibição absoluta da tortura, mesmo que isto signifique assumir algum risco hipotético. E isso devido ao fato de não estar em jogo o que poderíamos fazer em um futuro imaginário, mas o tipo de sociedade na qual queremos viver hoje e todos os dias.
Embora contenha elementos de realidade, o Cenário da Bomba-Relógio “puro” chega a ser quase uma fantasia. Não corresponde ao que de fato ocorre na vasta maioria dos acontecimentos, onde uma conspiração é desbaratada antes do pretendido ataque tornar- se iminente, ou o ataque acontece, mas não há nenhum envolvido sob custódia que possa revelar de antemão informações para impedi-lo. Além disso, levando-se em conta que o Cenário da Bomba-Relógio é freqüentemente apresentado no contexto de ameaças por parte de redes terroristas organizadas, é possível deduzir que um ataque seria planejado para acontecer mesmo se um de seus integrantes fosse preso. Isto apenas enfatiza quão raramente poderiam coincidir todas as improváveis premissas do Cenário da Bomba- Relógio “puro”. Se tais situações são tão raras, faria sentido alterar nosso sistema de leis internacionais e nacionais, mesmo aceitando como fato o que é pura hipótese (algo que, pelos motivos explicados antes, não fazemos)?
Por sua própria natureza, uma lei que estabeleça exceções para lidar com riscos futuros, em grande parte desconhecidos, pode enfraquecer a efetividade da proibição absoluta no presente. Isto em parte se deve ao fato de que a brecha legal precisa ser elaborada em termos amplos, para abranger elementos específicos de qualquer situação surgida no mundo real. Em decorrência disso, poderá ser aplicada a casos muito distintos daqueles para os quais foi originalmente elaborada. Os órgãos legislativos, por sua vez, têm extrema aversão a riscos quando se trata da segurança pública, podendo-se esperar que ampliem gradualmente o âmbito de qualquer exceção, como vem ocorrendo
com quase todas as medidas contra o terrorismo adotadas desde 2001. A tortura em particular tem um efeito social extremamente corrosivo. A lei, como instituição, não pode acomodar qualquer exceção à proibição da tortura sem que esta rapidamente se torne inócua. Criar uma exceção legal à proibição da tortura, na prática, significaria abrir as comportas à aplicação da tortura de forma muito mais disseminada.
Além disso, da mesma maneira que não é realista dar como quase certos os diversos elementos do Cenário em situações concretas, pode-se presumir que qualquer brecha permitiria a aplicação da tortura a partir de variados graus de suspeita. Com a diminuição do necessário grau de certeza, aumenta a probabilidade de que as pessoas não envolvidas sejam torturadas, devido a erros de identificação ou por estarem “no lugar errado no momento errado”.
A História também demonstra que a tolerância da tortura leva à sua proliferação, passando a ser aplicada em relação a outros tipos de “males” tão sérios quanto o mal do Cenário da Bomba-Relógio e a outros propósitos diferentes do obter informações.
A instituição de uma exceção legalizada, mesmo por parte de um único Estado, causaria também sua proliferação internacional. Se Estados que se pretendem líderes mundiais em direitos humanos manifestam tolerância em relação à tortura, ainda que em circunstâncias restritas, outros Estados o tomarão como exemplo para continuar ou expandir o uso próprio da tortura contra suas populações, em circunstâncias muito mais amplas que as previstas no Cenário. Assim, não é difícil imaginar a enorme redução nos esforços diplomáticos caso um Estado, antes “proibicionista” da tortura, passe a ser só mais um constrangido torturador.
Além disso, o uso da tortura por um Estado permite a outros países legitimarem mais facilmente a aplicação da tortura contra seus próprios soldados e cidadãos. Não é de se admirar que, devido a isso, muitos líderes militares sejam veementemente contra a tolerância da tortura entre suas próprias forças.
O uso ou tolerância da tortura, por um governo democrático, como medida
antiterrorista, dilui as diferenças morais entre tal governo e os terroristas, pelo menos aos olhos das populações de outros Estados. É precisamente a justificativa dos terroristas de realizarem atos desumanos em nome de alguma causa maior que constitui a base da condenação de suas ações por parte dos governos. Também municia a alegação dos terroristas de que os governos democráticos apenas fingem se pautar por princípios sólidos, aos quais de pronto descartam quando já não é mais conveniente. Além disso, a tortura pode radicalizar tanto as vítimas como seus simpatizantes. Todos estes fatores facilitam às redes terroristas o recrutamento de novos adeptos e a conquista da simpatia ou do apoio de populações locais, o que pode levar à intensificação dos ataques e, presumivelmente, provocar mais tortura em resposta.
Todo minuto gasto em considerar e planejar a aplicação da tortura como medida antiterrorista é também um minuto desperdiçado na construção da capacidade de usar outros meios para prevenir ataques. O foco em técnicas coercitivas, que freqüentemente geram informações duvidosas ou inúteis, desvia recursos do desenvolvimento e aplicação de outras e mais apropriadas técnicas de investigação. Confiar na tortura como técnica investigativa, em algumas circunstâncias, tende a originar a dependência da tortura como prática geral.
Finalmente, devemos reconhecer que a preparação para o uso da tortura, mesmo em circunstâncias excepcionais, implica certos acordos institucionais que, no fundamental, parecem inconsistentes com o tipo de sociedade que a maioria das pessoas deseja. Podemos antecipar centros clandestinos de interrogatório, com equipes treinadas em técnicas de tortura (presumivelmente em alguma espécie de academia de tortura). Andaríamos nas ruas entre homens e mulheres estimulados a anular a repulsa natural em causar dor e sofrimento a outro ser humano impedido de se defender. Pesquisadores trabalhariam para descobrir e produzir técnicas e aparelhos de tortura cada vez mais horrendos. No passado, tais tipos de acordos institucionais estiveram associados aos nazistas, outros estados fascistas, ditaduras e sociedades totalitárias. O que diriam a respeito da nossa sociedade se adotássemos as mesmas técnicas essenciais a esses regimes? Com qual tipo de companhias nós desejamos andar?
3. A Proibição Legal
A proibição absoluta da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes figura em todos os tratados internacionais relevantes e constitui uma norma geral (consuetudinária) do direito internacional, obrigatória a todos os Estados. Sob nenhuma circunstância, até mesmo emergências, estão previstas exceções ou sua revogação parcial.
A tortura é crime sob o direito internacional, havendo consenso entre os Estados que todo torturador deverá ser submetido à justiça a qualquer tempo, não importando o lugar do mundo onde for capturado.
Nenhuma das hipóteses citadas no Cenário da Bomba-Relógio ou outras justificativas, como ter agido por bons motivos, constituem bases válidas para isentar alguém da responsabilidade penal pela tortura. Necessidade, autodefesa e outras alegações não justificam casos de tortura, não importando quão extremas ou graves as circunstâncias. (4) Mesmo nas situações improváveis do Cenário, os torturadores não devem ser exonerados da responsabilidade legal por seus crimes; do contrário, pretextos como “julguei ser necessário” privariam a lei contra a tortura de toda força real.
Uma questão à parte é a sentença específica adequada a qualquer caso individual de tortura. Da perspectiva dos direitos humanos, é importante assegurar que cada sentença seja particularizada às circunstâncias do crime e à pessoa condenada, tendo em mente que todas as sentenças em casos de tortura devem levar em consideração a grave natureza de tais atos. (5)
4. Moralidade e Ética
A expressão de nossos valores morais básicos, comuns a todos os países do mundo, pode ser encontrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras Convenções adotadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
O artigo quinto da Declaração Universal dos Direitos Humanos declara que
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.” (6)
Esta proibição é reforçada pelo artigo dois da Declaração sobre a proteção de todas as pessoas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada pela Assembléia Geral da ONU:
Todo ato de tortura ou outro tratamento ou pena cruel, desumano ou degradante constitui uma ofensa à dignidade humana e será condenado como violação dos propósitos da Carta das Nações Unidas e dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos Humanos.
O artigo três dessa Declaração dissipa qualquer dúvida de que as nações do mundo já rejeitaram há muito tempo a lógica moral do Cenário da Bomba-Relógio:
Não poderão ser invocadas circunstâncias excepcionais, tais como estado de guerra ou ameaça de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública, como justificativa da tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Como se assinalou antes, a substância destas Declarações também se tornou parte do direito internacional, e não há dúvida de que todo uso de tortura em uma situação prevista no Cenário constitui uma violação do direito internacional e um crime sob o direito internacional. Além disso, deixando de lado a questão da legalidade internacional, há sólidos motivos morais e éticos para a rejeição de todo ato de tortura em um Cenário da Bomba-Relógio ou qualquer tentativa, sob quaisquer circunstâncias, de legalizar a tortura através de leis nacionais.
Vale a pena fazer uma distinção entre qual resposta moral a sociedade deve dar, em antecipação a um Cenário da Bomba-Relógio realista, e o que as pessoas, individualmente, de fato devem ou não devem fazer, ao se depararem com tais circunstâncias. A forma pela qual, na maioria das vezes, o Cenário é apresentado procura
embaralhar essas questões, e isto é um de seus efeitos mais perigosos e insidiosos.
Naturalmente, para muitos as respostas a “o que a sociedade deveria esperar moralmente de mim” e “o que eu, moralmente, deveria fazer” seriam as mesmas: a tortura está absolutamente proibida como questão de moralidade e ética e, em conseqüência, nenhuma tortura deve ser aplicada ou tolerada, não importando quão elevados sejam os custos. As pessoas podem encontrar a base da proibição moral absoluta da tortura, tanto a nível pessoal como social, em quaisquer de diversas fontes: o compromisso comum, universal e absoluto pela dignidade humana, do qual emanam as declarações de direitos da ONU; princípios éticos pessoais; fé religiosa; doutrina militar; outros preceitos e opiniões.
Não causa surpresa que quaisquer destas fontes de convicção moral e ética possam levar uma pessoa a rejeitar a aplicação da tortura no Cenário da Bomba-Relógio, tanto em termos morais pessoais como sociais, devido aos muitos aspectos que tornam a tortura particularmente terrível:
Está entre os piores tipos de sofrimento que alguém pode infligir a outra pessoa. Muitos preferem morrer a serem submetidos à tortura.
O preso torturado é indefeso. Uma pessoa sem nada a revelar é inteiramente incapaz de mudar seu destino, tendo como única perspectiva a tortura continuada.
A dignidade humana da vítima foi reduzida a pó, seu corpo e sua mente são tratados como simples meios.
Ao tolerar ou aprovar a tortura, a sociedade tolera ou aprova que alguém, intencionalmente, prive outra pessoa da integralidade de sua dignidade humana, com isso degradando a própria sociedade.
As conseqüências da tortura freqüentemente duram a vida toda.
A tortura está intimamente associada aos governos mais horrendos e opressivos já conhecidos na História humana.
A tortura é a essência concentrada da tirania, uma pessoa tiranizando outra – quebrando sua vontade através da dor. Nossa sociedade não pode tolerar a tirania, pois ela é o oposto de nossa sociedade.
A maioria dos seres humanos sente forte repulsa física ao testemunhar ou mesmo imaginar a mutilação ou a imposição de dores intensas a outros.
O próprio torturador pode ser corrompido, psicologicamente perturbado, degradado e destituído de dignidade por seus atos, com conseqüentes danos à sua família e outras pessoas próximas.
Não causa surpresa que, para um grande número de pessoas, o compromisso moral contra a tortura as leva mesmo a aceitar o risco de que, sem sua aplicação, muitas outras possam vir a morrer. Embora a proteção dos seres humanos seja essencial, a maioria acredita que, para a existência humana, há algo mais importante que a simples preservação de vidas individuais. A todo tempo, muitos optam conscientemente pelo sacrifício em defesa de um modo de vida. Os tratados internacionais de direitos humanos e as leis de guerra contêm o princípio de que algumas coisas são tão repreensíveis moralmente que nunca podem ser usadas, ainda que esteja em jogo a sobrevivência de uma nação, e a tortura é expressamente citada entre elas.
Mas não é necessário acreditar que alguém, apenas por uma questão de ética pessoal, jamais recorreria à tortura, mesmo em um Cenário da Bomba-Relógio “puro”, para repelir tentativas de justificar a tortura como moralmente aceitável em termos de sociedade. O cálculo utilitário embutido no Cenário “puro” manipula a intuição moral do público, evidenciando só algumas das conseqüências do torturar ou não torturar, enquanto omite outras igualmente ou ainda mais graves. Quando as conseqüências ocultas são incluídas na equação, torna-se claro que qualquer brecha na regra jurídica absoluta contra
a tortura levaria a conseqüências práticas e morais que contrabalançam qualquer hipotética “injustiça” decorrente da condenação de um torturador individual em tais circunstâncias.
Por exemplo, o Cenário esconde do público o fato de que uma exceção levaria, a julgar por todos os precedentes históricos, a uma proliferação de tortura. Assim, não devemos considerar apenas o sofrimento de um ou vários supostos terroristas em qualquer cálculo utilitário, precisamos acrescentar o sofrimento de centenas ou milhares de futuras vítimas, muitas delas completamente sem culpa. Devemos também pesar o efeito corrosivo entre a sociedade de aceitar o risco de torturar indivíduos que não têm ligação com o terrorismo, por casos de erros de identidade como os que já denunciamos em relatórios internacionais sobre tortura. Devemos considerar as conseqüências da preparação para o uso da tortura: a formação de uma classe profissional de torturadores, treinada e equipada. Precisamos ainda agregar ao Cenário os efeitos a longo prazo da adoção de métodos de terroristas, entre eles um provável aumento no número de atentados, já que o uso da tortura poderia intensificar o recrutamento de novos membros pelas redes terroristas, além da menor disposição das populações de outros países em cooperar com os esforços para prevenir futuros ataques. Por exemplo, alguém que, de outra forma, daria informações sobre possíveis atentados, poderia relutar em fazê-lo por temer que ele próprio ou outros sejam torturados, ou por não aceitar a aplicação de tortura contra conhecidos ou pessoas com as quais se identifica. Há outras intangíveis mas graves conseqüências na sociedade cujo governo promove ou tolera que se inflija deliberadamente sofrimento nos corpos dos que estão sob seu controle: a tortura é um veneno que, quando injetado na corrente sanguínea da sociedade, mesmo em doses mínimas, se espalhará e apodrecerá a carne, até necrosar todo o paciente.
Quando estes fatores são adicionados à equação, a balança utilitária implícita no Cenário da Bomba-Relógio não mais se inclina artificialmente em favor da tortura. Desta forma, mesmo os que defendem o Cenário a partir de uma perspectiva moral utilitária, ao invés de absoluta, devem rejeitar moralmente a legalização de qualquer ato de tortura. Em resumo, a resposta da sociedade a toda tentativa de legitimar a tortura deve ser sempre a reafirmação de que ela jamais pode ser moralmente justificada.
Conclusão
Voltamos, então, aonde começamos. A absoluta e irrevogável proibição da tortura e todas as outras formas de tratamentos ou penas cruéis, desumanas e degradantes deve ser sustentada sem hesitação, não só frente aos desafios do Cenário da Bomba-Relógio, mas em todos os lugares onde a tortura ou sua possibilidade ainda estão à espreita.
A tortura pertence à mesma espécie que o genocídio e a escravidão. Os projetos políticos e jurídicos associados ao Cenário da Bomba-Relógio precisam ser rechaçados exatamente como rejeitaríamos propostas em favor do genocídio ou escravidão: com veemente reprovação, lástima, repulsa e um sonoro e absoluto “NÃO”.
(Texto original: Defusing the Ticking Bomb Scenario: Why we must say No to torture, always, produzido pela Association for the Prevention of Torture - APT - www.apt.ch
 
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