Ver autoresPor Alessandro Cristo

Ainda usada de forma tímida pelo fisco estadual e com menos de um ano em vigor, a lei fluminense que permite o protesto de dívidas tributárias nos cartórios extrajudiciais e a inscrição de contribuintes em cadastros de restrição do crédito já é alvo de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. As ações, movidas pela Associação Comercial do Rio de Janeiro e por dois deputados do estado, mostram o que a norma pode enfrentar quando sair da fase de implantação e passar a ser aplicada a todos os débitos inscritos em dívida ativa. Usada desde junho, a regra hoje é aplicada somente quando são rompidos parcelamentos com a Procuradoria-Geral do Estado.

Publicada em dezembro, a Lei 5.351/08 permite que a Procuradoria envie os nomes de devedores inscritos em dívida ativa aos cartórios de protestos. Por mês, cerca de 500 nomes já são protestados pelo fisco, como contou o procurador Nilson Furtado em entrevista à Consultor Jurídico em setembro. "Ainda estamos criando checagens para fazer a remessa de forma eletrônica, por meio de um convênio com os cartórios", disse. Segundo ele, a medida tem conseguido que 10% dos devedores protestados quitem ou reparcelem as dívidas.

Para a Associação Comercial do Rio de Janeiro, no entanto, com esse comportamento, o estado dá um tiro no próprio pé. "Se com o regular funcionamento de sua atividade o contribuinte encontrava-se em situação de inadimplência, falido mesmo é que ele não vai pagar o que deve", diz a entidade na Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada em setembro. A justificatica é a maior dificuldade que as empresas terão para conseguir crédito, caso tributos devidos possam ser negativados, como dívidas civis.

Até agora, as únicas contestações enfrentadas pela lei na Justiça haviam sido de contribuintes protestados. Duas liminares foram concedidas em favor deles, proibindo que o fisco negativasse seus nomes. Em setembro, porém, a Associação Comercial do Rio de Janeiro decidiu formalmente pedir a derrubada da lei. A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ajuizada no Tribunal de Justiça do estado e será julgada pelo Órgão Especial da corte. 

É o artigo 3º o ponto de conflito. O dispositivo dá ao fisco o direito de protestar contribuintes inscritos na dívida ativa, interpretando a Lei Federal 9.492/97, que disciplina os protestos extrajudiciais. Para a Associação Comercial, essa previsão contradiz o artigo 72 da Constituição Estadual, já que legislar sobre cartórios é competência da União. O artigo 72 afirma que "o Estado exerce todas as competências que não lhe sejam vedadas pela Constituição da República".

Além disso, a entidade alega que a lei federal citada como base para os protestos não inclui os créditos tributários no grupo de dívidas passíveis da medida. "Coube ao Código Tributário Nacional, entre seus artigos 183 a 193, estabelecer garantias e privilégios do crédito tributário. A possibilidade de protesto extrajudicial não restou contemplada naquele Código", diz a ação.

A norma estadual também autoriza o fisco a inscrever os devedores em cadastros de restrição do crédito, como o da Serasa e do SPC. Para os advogados Daniel Homem de Carvalho e Camilo Fernandes da Graça, autores da ação, a Fazenda Pública já tem seu próprio meio de executar créditos tributários, que é a Lei de Execução Fiscal (Lei Federal 6.830/80). A norma privilegia as execuções, que também têm benefícios do Código de Processo Civil. Um deles é a necessidade de apresentação de garantia quando o devedor quiser impugnar o processo por meio de embargos. A lei também garante a preferência do crédito tributário em relação a todas as demais dívidas, exceto as trabalhistas.

Os advogados dizem ainda que nem todos os inscritos realmente devem os tributos cobrados pelo fisco e a inscrição em cadastros privados de devedores pode trazer danos morais e materiais a pessoas físicas e empresas. Segundo a Associação Comercial, a lei cria "mecanismos de cobrança que atacam o patrimônio imaterial das empresas, consubstanciado no abalo de sua honra objetiva".

A seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no estado já pediu sua inscrição como amicus curiae no processo. A entidade deve encorpar o pedido classificando o protesto de dívidas tributárias como sanção política, como explica o advogado Maurício Pereira Faro, membro da Comissão de Assuntos Tributários da seccional. Segundo ele, a tentativa do fisco é intimidar as empresas a pagarem o que devem para não serem excluídas do mercado.

Outro argumento com o qual a OAB pretende convencer o tribunal é a obrigação constitucional de que seja exclusivamente o estado que cobre os devedores. "Quando se transfere as dívidas aos cartórios, a cobrança está sendo terceirizada", diz Faro.

A alegação é a mesma feita pela Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape) na ADI 3.786, ajuizada no Supremo Tribunal Federal contra a Resolução 33/06 do Senado Federal. A norma autorizou estados e municípios a repassarem cobranças de tributos atrasados a instituições financeiras. A Procuradoria-Geral da República já opinou pela procedência da ação porque o ato do Senado ampliou indevidamente o rol dos legitimados a "perseguir a extinção da obrigação tributária". A ADI aguarda voto do relator, ministro Carlos Britto.

Ataque em massa
No Rio, antes da Associação Comercial, os deputados João Pedro Figueira (DEM) e Luiz Paulo (PSDB) já haviam ajuizado uma ADI contra os protestos em março. Eles alegaram afronta ao artigo 176, parágrafo 6º, da Constituição Estadual, que afirma ser de competência privativa da Procuradoria-Geral do Estado a cobrança judicial e extrajudicial da dívida ativa. Assim, o artigo 3º da Lei 5.351 seria inconstitucional por tirar da Procuradoria uma atribuição exclusivamente sua e por não seguir o rito de execução previsto na Lei Federal 6.830/80.

A explicação é simples. A definição de protesto está no artigo 1º da Lei Federal 9.492/97. É o "ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida". Esse papel de confirmar a inadimplência, para os advogados Jéferson Fernandes e Marcelo Queiroz, que representam os deputados, já é feito pela certidão de dívida ativa, que tem presunção de certeza e liquidez, conforme a Lei de Execução Fiscal.

A PGE-RJ já está preparada para a guerra judicial, segundo o procurador Nilson Furtado. "Quando a Fazenda protesta, dá publicidade maior ao mercado em relação à dívida tributária, que tem preferência de pagamento em relação a outros créditos", justifica. Um acordo a ser firmado até o fim de outubro permitirá que o fisco inscreva os nomes dos devedores em cadastros de restrição ao crédito, como o da Serasa. A medida já foi adotada em estados como Goiás e Rio Grande do Norte, assim como no município paulista de São Vicente.

A contratação de instituições financeiras que tentem recuperar créditos com cobranças amigáveis, como bancos, por exemplo, também foi alvo da ação dos deputados. De acordo com a lei estadual, elas podem ser remuneradas com uma porcentagem do que arrecadarem, o que é uma usurpação de função da Procuradoria e geraria custos não previstos no Orçamento estadual, segundo a ação dos deputados.

Ferramenta exclusiva
Em pelo menos três casos anteriores, o Tribunal de Justiça do Rio considerou abusiva a prática do fisco municipal de Mangaratiba, que adotou os protestos. Em 2008, a 17ª Câmara Cível entendeu ser irregular a negativação de um devedor de IPTU. "O protesto de certidão da dívida ativa configura procedimento incompatível com cobrança do crédito tributário, em razão de possuir a Fazenda Pública procedimento próprio previsto na Lei 6.830/80", disse o desembargador Edson Vasconcelos, relator do processo que negou um recurso do município.

O desembargador Binato de Castro, da 12ª Câmara Cível, reconheceu dano moral a uma imobiliária protestada pela prefeitura, que acabou perdendo negócios devido à negativação. A indenização foi arbitrada em R$ 14 mil. "No exercício da imposição tributária, não é permitido ao poder público agir como particular, visto que a mora do devedor tributário não se constitui pelo protesto, mas sim pela notificação administrativa do lançamento da exceção", disse o desembargador na decisão. "Os entes federativos devem cobrar seus créditos mediante o ajuizamento da competente execução fiscal", afirmou a desembargadora Conceição Mousnier, da 2ª Câmara Cível, em 2006, ao julgar um recurso de Mangaratiba contra decisão que reconheceu dano moral a um devedor pessoa física de IPTU.

Foi o que também entendeu o ministro José Delgado, da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento de um Agravo da cidade de Londrina contra decisão do TJ do Paraná. "Não há necessidade de protesto prévio do título emitido pela Fazenda Pública. Se a CDA tem presunção relativa de certeza e liquidez, servindo inclusive como prova pré-constituída, o inadimplemento é caracterizado como elemento probante", disse o ministro, para quem "falta interesse ao ente público que justifique o protesto prévio da CDA". A decisão é do ano passado.

O fisco do município de São Paulo optou pela experiência do protesto em 2005, mas suspendeu a medida no ano seguinte, com medo de possíveis pedidos de indenização na Justiça. O governo estadual de São Paulo, que também adotou a ideia temporariamente, parou de protestar devedores depois de uma liminar concedida à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, em 2006, pelo TJ-SP.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também condenou o município de São Vicente a indenizar uma imobiliária por danos morais depois que o fisco protestou uma dívida já paga de IPTU. A norma municipal que permitiu os protestos, a Lei Complementar 263/99, foi declarada inconstitucional, segundo reportagem do jornal Valor Econômico.

Clique aqui para ler a ADI dos deputados João Pedro Figueira e Luiz Paulo.

Clique aqui para ler a ADI da Associação Comercial do Rio de Janeiro.

Clique aqui para ler o parecer da PGR contra a Resolução 33/06 do Senado.

ADI 2009.007.00055

ADI 2009.007.00020

Apelação Cível 2008.001.07619 (17ª Câmara Cível)

Apelação Cível 2007.001.35112 (12ª Câmara Cível)

Apelação Cível 2005.001.35811 (2ª Câmara Cível)

Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 936606 (STJ)

Alessandro Cristo é repórter da revista Consultor Jurídico

fonte -site conjur - acesso em 12.10.2009
 
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