PARECER SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL DE GOIÂNIA Nª 8.334/05
(Lei que regulamenta a cobrança compulsória de 10% em bares e outros no Município de Goiânia)
Nayron Divino Toledo Malheiros[1]
1. Introdução
Foi requerido parecer técnico sobre a possível constitucionalidade ou não da lei municipal nº 8335/05 de Goiânia que disciplina autorização da cobrança de 10% (dez por cento) sobre as despesas efetuadas nos bares, restaurantes e similares a título de gratificação aos garçons cujo inteiro teor transcrevo abaixo:
A Câmara Municipal de Goiânia Aprova e Promulga a seguinte Lei:
Art. 1° - Ficam hotéis, motéis, bares, restaurantes e estabelecimentos afins, mediante celebração de Acordo Coletivo de Trabalho com sindicato obreiro, autorizados a cobrarem um percentual, a título de taxa de serviço, correspondente ao montante de 10% (dez por cento) sobre as consumações contas ou faturas das despesas efetuadas pelos clientes.
§ 1º - O valor decorrente de taxa de serviço cobrado nos termos do “caput”, deverá ser distribuído aos empregados da empresa, seguindo os critérios de rateio assim firmados em Acordo de Convenção Coletivos de Trabalho com o sindicato obreiro.
§ 2° - As empresas que acrescem às notas de seus consumidores a taxa de serviço, poderão reter no máximo 30% (trinta por cento) do faturamento correspondente à mesma para cobrir os encargos sociais e previdenciários, devendo os 70% (setenta por Cento) serem repassados aos empregados mensalmente.
Art. 2°- Constará obrigatoriamente nos menus, cardápios, notas e faturas, em local visível, a seguinte redação: “Cobramos a Taxa de Serviço.”
Art. 3° - O estabelecimento que violar quaisquer dos dispositivos desta lei ficará sujeito a multa de 2.000 (dois mil UFIRS), a ser revertida 50% (cinqüenta por cento) em favor da Fazenda Municipal e 50% (cinquenta por cento) em favor do Fundo Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor, mediante realização de convênio.
Art. 4° - Essa Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Para que seja feita tal análise será necessária uma digressão sobre a competência legislativa municipal definida nas Constituição Federal e Estadual de Goiás o que será feito a seguir.
2. A Constituição Federal de 1988 e a repartição das competências legislativas
A CF 88 enunciou de forma bastante clara quais são as competências legislativas da União, Estados, Municípios e do Distrito Federal, repartição esta que pode ser resumida da seguinte maneira:
a) Competência privativa da União (CF, art. 22)
b) Possibilidade de delegação de competência da União para os Estados (CF, art. 22, parágrafo único)
c) Competência concorrente União/Estado/Distrito Federal (CF. art. 24)
d) Competência remanescente (reservada) do Estado. (CF, art.25, §1º)
e) Competência exclusiva do município (CF, art. 30, I)
f) Competência suplementar do município (CF, art. 30, II)
g) Competência reservada do Distrito Federal (CF, art. 32, §1º)
Para a análise do caso concreto, as competências que serão estudadas neste parecer são as exclusivas e suplementares do município, e ao fim se verificará a regularidade da lei questionada com a previsão constitucional.
3. Competência exclusiva e suplementar do município
Conforme já tratado anteriormente a competência legislativa municipal está definida no art. 30, I e II da Constituição Federal, a qual transcrevo abaixo:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
E também do art. 64 da Constituição Estadual de Goiás, que repetiu o texto trazido pela Constituição Federal:
Art. 64. Compete aos Municípios:
I - legislar sobre assuntos de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber;
Da leitura do artigo verifica-se que a expressão chave da legislação municipal é o “interesse local”, nas palavras do ilustre professor Alexandre de Moraes, esta expressão é o catalisador dos assuntos de natureza legislativa municipal, in verbis:
A atividade legislativa municipal submete-se aos princípios da Constituição Federal com estrita obediência à lei orgânica dos municípios, à qual cabe o importante papel de definir as matérias de competência legislativa da Câmara, uma vez que a Constituição Federal não a exaure, pois usa a expressão interesse local como catalisador dos assuntos de competência municipal.[2]
Deve-se ser levado em conta ainda que até mesmo a legislação suplementar que trata o inciso II deve ser balizada pelo interesse local, não devendo assim ser interpretada como um artigo liberatório para o município legislar sobre qualquer tema que julgue necessária.
Nas palavras do Doutrinador Pedro Lenza, este artigo define que compete ao município legislar nas lacunas da legislação federal e estadual , mas “basilando-se” dentro do interesse local.[3]
4. Do conceito da expressão “Interesse Local”
Tal expressão apareceu pela primeira vez no ordenamento jurídico constitucional brasileiro com a CF 88, sendo considerada assim pela corrente majoritária da doutrina como um requisito redutor das competências do município, vejamos:
a terminologia interesse local implica redução da competência municipal pois, na medida em que determinada questão interessar ao Estado-Membro, a regulação da mesma passa a pertencer-lhe. Isto porque, nesse caso, acredita-se que o campo do peculiar interesse é o que significa preponderância e não exclusividade. Em sentido diametralmente oposto, há quem sustente uma ampliação do âmbito de competência dos Municípios e que agora os mesmos não necessitam demonstrar que dada matéria é de seu peculiar interesse, este mais restrito que interesse local.[4]
Seu conceito também foi tratado pela doutrina donde tiramos os ensinamentos de Celso Ribeiro Bastos por sua vez, assim define interesse local:
Os interesses locais dos Municípios são os que entendem imediatamente com as suas necessidades imediatas e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais. [5]
Diante disso quando existirem dúvidas sobre o interesse local, deve-se analisar o caso pela ótica do Princípio da Preponderância do Interesse, como forma de se definir tal competência, evitando assim que haja extrapolação dos limites do poder de legislar por parte do município.
5. Da análise da lei municipal nº 8334/05 e sobre a ótica constitucional.
Da simples leitura do texto da lei 8334/05 aprovada pela Câmara Municipal de Goiânia, verificamos que a mesma trata sobre a autorização de cobrança de taxa de 10% sobre os serviços prestados no rol de estabelecimentos comerciais ali definidos, e que tais valores deverão ser distribuídos aos empregados, seguindo critérios de rateio firmados em acordos de Convenção Coletivas de Trabalho com o Sindicato obreiro das referidas classes.
Não restam dúvidas que tal matéria ali disciplinada trata única e exclusivamente sobre a remuneração dos trabalhadores daqueles estabelecimentos ali elencados, ou seja, matéria única e exclusivamente de cunho trabalhista e previdenciário, que não resguarda nenhuma identidade lógica com o interesse local e específico do município de Goiânia.
Além da clara ausência de interesse local, o que por si só já macula esta lei de inconstitucionalidade latente, a mesma ofende também a Constituição Federal no sentido de que trata de direito do trabalho, matéria esta de competência privativa da União conforme artigo 22 de nossa Carta Magna:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. (grifei)
Diante disso não pairam dúvidas que o poder legislativo municipal usurpou da competência da União em legislar sobre o tema que não possui nenhum interesse local demonstrado e que é especificadamente de direito trabalhista.
Conforme informações do MPGO, na exposição de motivos do projeto que originou esta lei, seu autor Vereador Djalma Araújo, remete seu objetivo a proteção do trabalhador, aludindo ao dispositivo do art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho.
Neste sentido já se manifestou o próprio STF sobre a impossibilidade de tal usurpação de competência legislativa:
A competência constitucional dos Municípios de legislar sobre interesse local não tem o alcance de estabelecer normas que a própria Constituição, na repartição das competências, atribui à União ou aos Estados. O legislador constituinte, em matéria de legislação sobre seguros, sequer conferiu competência comum ou concorrente aos Estados ou aos Municípios." (RE 313.060, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-11-2005, Segunda Turma, DJ de 24-2-2006.)
E em caso semelhante o TJRJ definiu que lei estadual sobre o tema estava usurpando de competência privativa da União legislar sobre matéria de direito do trabalho ao estabelecer gorjeta compulsória, vejamos julgado:
REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE LEI ESTADUAL N. 4159/2003 BAR E RESTAURANTE GORJETA COMPULSÓRIA PRIVILÉGIO PROCEDÊNCIA DO PEDIDO Representação por inconstitucionalidade. Precedente pretoriano no sentido de que 'A Corte deve considerá-la por todos os aspectos em face da Constituição e não, apenas, diante daqueles localizados pelo autor' (Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1434 SP, Medida Cautelar, RTJ 164/506). Pleito analisado em consideração 'à adequação da norma impugnada à Constituição Estadual. Vulneração dos artigos 72, 98 e 99 da Constituição do Estadual por dispor sobre Direito do Trabalho. Procedência (Representação de inconstitucionalidade 130/2003 – TJRJ – Relator Des. Jorge Uchoa)
CONCLUSÃO
Com base em tudo que foi exposto anteriormente, fica reafirmado que a lei municipal nº 8334/05 de Goiânia é inconstitucional, haja vista que a matéria ali disciplinada não tem nenhuma relevância de “interesse local”, ofendendo ainda o art. 22 da CF por disciplinar matéria de direito do trabalho que é de competência exclusiva da União.
Posto isso é necessário que tal norma seja extirpada do ordenamento jurídico municipal imediatamente evitando-se assim a continuidade desta cobrança que é totalmente inconstitucional.
Este é o parecer.
Goiânia, 3 de janeiro de 2011
[1] Membro da Brasilcon (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor), Ex - Diretor Jurídico do Procon Goiânia, Ex - Secretário Geral da Comissão de Defesa do Consumidor da OABGO, Servidor Público do Tribunal de Justiça de Goiás, Pós-Graduado em Direito Tributário pela UNIDERP, Pós-Graduando em Direito Civil e Processual Civil pela UCM.
[2] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. Ed. Atlas. 2004, p.303
[3] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo. Saraiva. 2010, p.368
[4] SILVEIRA, Patrícia Azevedo da. Competência Ambiental. Curitiba: Juruá, 2003. p. 73
[5] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. p. 311.
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